A solidão é uma constante na história da humanidade. Em tempos remotos, podia ser refúgio: o silêncio do eremita, o recolhimento do guerreiro, o retiro do místico. Contudo, com a modernidade e o avanço das relações cada vez mais individualizadas, ela foi se metamorfoseando — passou de escolha para sentença, de recolhimento para exclusão.
Hoje, a solidão deixou de ser apenas um estado emocional para tornar-se um fenômeno social. Como lembra Bauman (2004), na modernidade líquida as conexões tornaram-se frágeis e o pertencimento, instável. Nesse cenário, surgem solidões que são mais do que ausência de companhia — são apagamentos sociais, marcas da marginalização histórica.
Para a população negra, essa solidão é herança. É um legado constituído por séculos de racismo estrutural, epistemicídios (SANTOS, 2007) e negações sistemáticas da humanidade negra. Não se trata de uma solidão subjetiva, mas de um lugar político: uma ausência produzida socialmente e perpetuada por estruturas de exclusão.
A solidão negra: histórias de perdas e resistências

A diáspora africana inaugurou para o povo negro um tempo de perdas contínuas. O sequestro colonial que arrancou milhões de africanos de seus territórios não apenas destruiu corpos e culturas, mas desestruturou laços, apagou nomes, interrompeu linhagens (GILROY, 2001). A partir dali, uma nova forma de solidão nasceu — a solidão do exílio forçado, do pertencimento negado, da identidade fragmentada.
Essa solidão persiste. Está nos espaços urbanos onde corpos negros se tornam estranhos. Está na invisibilidade das instituições. Está no silenciamento das subjetividades negras. Como bem pontua Fanon (2008), a pessoa negra é constantemente empurrada para uma posição de objeto no olhar do outro, tendo sua identidade marcada pelo racismo e pela exclusão.
Estar presente não significa ser reconhecido. A presença negra, muitas vezes, é tolerada, mas não acolhida. Ser visto, como alerta Grada Kilomba (2019), é também correr o risco de ser ferido pela violência do olhar colonizado. A solidão negra é, então, o produto de um processo contínuo de desumanização e resistência.
A solidão da mulher negra: forte para quem?

Ser mulher negra é existir sob múltiplas camadas de opressão: racismo, machismo, e classismo. Desde os estudos de Lélia Gonzalez (1988) e Sueli Carneiro (2003), sabemos que a mulher negra é lida socialmente como a que tudo suporta, a “forte”, aquela que não pode desabar. Tal construção não é elogio — é estratégia de desresponsabilização coletiva pelo cuidado e pela afetividade.
No campo afetivo, essa mulher sofre o abandono simbólico e concreto. Estudos como os de Ribeiro (2019) demonstram que mulheres negras são desumanizadas por estereótipos que as reduzem à hipersexualização ou à “mãe guerreira”, desprovidas de desejo, de delicadeza e de direito ao amor romântico.
A solidão afetiva, nesse sentido, não é individual, mas socialmente determinada. É fruto de um sistema que escolhe quem pode ser amado publicamente. Ainda assim, como ensina Bell Hooks (1995), as mulheres negras reinventam o amor como ato político, como espaço de autocuidado e criação coletiva.
E mesmo diante da exclusão, criam redes, constroem resistência, afirmam sua existência.
“O amor é, para muitas, também uma trincheira.”
A solidão do homem negro: entre a couraça e o menino esquecido

O homem negro, desde cedo, é ensinado a parecer forte. Não por escolha, mas por sobrevivência. Seu corpo é politizado pela ameaça. Sua existência é monitorada, vigiada, criminalizada. Como afirma Munanga (2004), o racismo marca o corpo negro com estigmas que o afastam da humanidade e o aproximam da suspeição.
Na tentativa de se proteger, o homem negro veste armaduras emocionais. Aprende a não demonstrar fragilidade. Mas, como revelam os estudos de Almeida (2018), essa exigência de invulnerabilidade o impede de acessar espaços de afeto, cuidado e acolhimento. Por trás da dureza, muitas vezes, há um menino ferido que nunca foi ensinado a ser amado sem reservas.
Essa solidão é especialmente cruel porque esconde a dor sob camadas de resistência. A ausência de espaços seguros para expressar sofrimento faz com que muitos adoeçam em silêncio. O racismo, aqui, não apenas fere: ele impede a cura.
> “A solidão do homem negro é a solidão de quem não pode cair.”
Reconstruir o que foi rompido é trabalho diário. Reaprender a chorar, a ser vulnerável, a se reconhecer digno de cuidado.
Presença pode ser cura

A solidão da população negra não é falha de personalidade, nem desvio subjetivo. É expressão de um projeto social excludente.
Combater essa solidão é tarefa coletiva. Exige mais do que discursos: exige práticas. Exige escuta ativa, políticas públicas de reparação, inclusão real. Exige reumanizar os vínculos. Como diria Audre Lorde (1984), “cuidar de si não é autoindulgência, é autopreservação, e isso é um ato de guerra política”.
Ser negro é resistir, sim. Mas precisa ser também viver com plenitude, ser reconhecido como humano, amar e ser amado sem medo.
Quando se nasce negro, a batalha por reconhecimento começa antes mesmo do primeiro choro.
Que as presenças, potentes e afetivas, sejam a resposta viva ao silêncio imposto por séculos.