Há pelo menos seis anos eu venho falando de Cinema. Ao iniciar essa coluna, preciso que vocês conheçam a história de quem vai te contar histórias. Entre idas e vindas, tenho um histórico político que quero muito externar:
Criado como evangélico desde criança. Rompi aos 17. Hoje tenho 36. Nunca estive confortável, eu fazia perguntas demais.
Dos 13 aos 26, formação e identificação Marxista-leninista. “Anarquismo não, Estado é mal necessário. Capitalismo é lei da selva”
Ali eu percebi que podia perguntar à vontade, só que acadêmicos são assim: fingem ter todas as respostas custe o que custar. Se não souber, inventam. Em seus limites, citam crenças tão religiosas quanto quaisquer outras.
Aos 18, voluntário no exército. Queria obter técnicas militares, e ressignificar a simbologia da bandeira brasileira. Me arrependi em três meses, apenas degradação e humilhação. Tive que completar um ano.
-Permissão pra falar, senhor!
-Tem permissão Soldado Gonçalves.
-Sargento, o exercício que estamos fazendo é ineficiente. Permissão para mostrar um que angaria maior tensão mecânica ao invés de causar lesões.
-Soldado, você está falando besteira. Duque de Caxias fez assim na Guerra do Paraguai… e nós ganhamos a guerra!
-Realmente, Sargento… diante disso eu não tenho mais qualquer argumento!
-DE NADA SOLDADO!
Aos 19 joguei categoria de base de futebol, no CATS. Ser jogador de futebol era um sonho de infância e adolescência toda. Cheguei perto aqui, mas algo na minha Psicologia não ia bem, e eu desisti.
Aos 20, fiz EJA. Aos 21, entrei na UNESP — Bauru, Psicologia. Acredito que não me perdoei por desistir, e entrei no curso pra, antes de tudo, tentar me entender.
Aos 22, trabalho voluntário na ONG AIESEC, dei tudo de mim lá durante um ano. Fiz trabalho social no Camboja. (2011) Meu “case de sucesso” é um dos mais falados da unidade Bauru até hoje.
De volta ao Brasil, cheguei a ser um dos vices presidentes na AIESEC Bauru. Articulei os votos necessários para trazer um amigo para os vice-presidentes. Depois de estarem lá ele e a namorada, ambos articularam com os outros VPs para boicotar minha candidatura à presidência. Saí da ONG depois disso.
Em 2013 me colei grau. Tive depressão e ansiedade. Abri meu consultório, faliu em um ano e meio. Depressão apertou. Amava Psicologia mas não amava mais o ofício. Tinha coisas dentro que precisavam sair, sendo que colocar mais histórias para dentro não estava sendo saudável.
Como autodidata para o vestibular, entrei no Curso Superior do Audiovisual da USP… mas eu ja tinha 28 e percebi que o autodidatismo estava mais para mim. Venho fazendo Audiovisual desde então.
Participei de dois quilombos urbanos. Um deles se provou ser interessado em extorsão pessoal e fabricação de religião própria, continha tudo de ruim de todos os outros grupos que já participei… Fiquei dois anos apegado, tentando ajudar a reformar as falhas… mas não adiantava, não era verdadeiramente um quilombo, era uma reunião de adoecidos e sedentos por imagens de força. Fluía a força compensatória dos medos, culpas e humilhações. Papo de atirar na cara dos próprios soldados. Coisa de Idi Amim Dada, só que sem poder algum, igual apenas no caráter. Aqui foi provavelmente a minha maior decepção com organizações ideológicas, porque é a que eu coloquei mais fé. Nota? Fé. Boto fé.
O segundo quilombo era de cunho artístico e econômico. Eu fundei junto a amigos, mas não vingou porque era preciso toda uma comunidade junto, e estávamos fragmentados vivendo sob desconfiança política por guerras internas nas ideologias panafricanistas.
Em síntese, eu seria considerado traidor em vários agrupamentos, pois deixei de compactuar e acatar com o todo em favor das partes.
Igreja, pátria, Universidade, esquerda e panafricanismo.
Tenho a solução? Provavelmente não, mas com certeza serei a negação do errado. Saindo do errado, posso também manter a parcela correta de cada um desses vetores sem precisar comprar todo o resto da porcaria em venda casada. É assim que funcionam as ideologias que mantém os grupos. Por conta de uma parcela de acerto, você compactua com uma porção venenosa de coisa errada.
Cada traição é uma exigência respeitada de meu Orí. Cada traição, uma nova camada de autenticidade. Os meus ancestrais ficam me sussurrando caminhos de traição. Nojeiras precisam ser traídas. Pactos injustos, mentirosos, malignos, devem ser traídos.
A fonte do poder pessoal é eliminar qualquer VESTÍGIO de se importar com qualquer coisa que um grupo social exija. Eles comercializam a sensação de você se sentir pertencente, e a moeda de troca é o seu silêncio.
Não existe, absolutamente, NENHUM adjetivo que possa me fazer considerar minhas atitudes fora do meu tribunal interno de valores morais. Meu Orí é um tribunal interno de valores morais que vive sussurrado por antepassados.
Eventualmente nos engajaremos espiritualmente com grupos e ideologias, com o tempo perceberemos as inconsistências, e então deveremos traí-las, e então seremos perseguidos pelo gado da vez.
Quem nunca traiu ideologia foi por carência que nunca o fez, e acabou se convertendo em um reprodutor estúpido da ideologia. A justiça ali não é mais sobre justiça, é sobre pertencimento. O que protege as ideologias é a vontade de pertencer. Tem essas pessoas que antes de discordar de qualquer sentença olham para os lados para ver a reação dos seus semelhantes. Tem aqueles que até já sabem o que podem aprovar.
Aos 11 eu já achava esse comportamento patético, desses que veem a inconsistência mas tem receio do que os miguxos vão falar. Um medo afetivo, meio adocicado assim… molinho. Absolutamente desprezível. Tenho respeito nenhum.
“Se você não está preparado para ser rejeitado, jamais tente escrever ou dirigir filmes.” Jordan Peele
Essa frase pra mim é profunda demais, porque a negação de um erro não é a afirmação de seu oposto. Esse é um dos grandes princípios Outsider. Nessa frase do Peele, não quer dizer que você possa fazer filmes que não engajam o público apenas porque você deixou de temer as suas reações. Os investidores quererão perder dinheiro com filme fracassado? Há diretores aí que não estão arriscando o próprio dinheiro, mas o do investidor ou o do governo. (Aí que tá um problema da esquerda por exemplo. Achar que dinheiro da cultura tem que cair da árvore. Falarei disso nessa coluna.)
Mas voltando… quando você chega em uma garota que gosta sem temê-la ou colocá-la num pedestal, você tem cem vezes mais chance de sucesso. Não significa que você não quer sua aprovação. O poder de cativar sem ser determinado pelo público é a coragem que um roteirista, produtor ou cineasta deve ter. A legitimidade de um amor que lhe quer muito, mesmo não precisando, é a coisa mais linda. Imagina, querer muito uma pessoa sem precisar dela? Precisando é fácil. Desconfio.
“Eu não preciso de você, Cinema, mas eu te quero mais que tudo.”
É assim que trago a frase de Jordan Peele para a realidade.
Saindo dos vetores de aprisionamento mental que as ideologias grupais oferecem em troca de pertencimento, você tem olhar livre pra enxergar e criar mundos diferentes em posse das boas ferramentas antigas, mas também desenvolvendo as suas próprias.
Oxóssi, o das matas, era temido porque passava muito tempo la nas matas, isolado da opinião da sociedade. Quando voltou mostrou poder descabido, resolvendo um problema que aquela sociedade não conseguia. Oxóssi não teria mesmo como ser amado, apenas temido.
Obviamente não se usava esse nominho em inglês naquela época, mas hoje podemos entender o que é um Outsider através disso. (falaremos mais sobre isso nos próximos textos)
Nos próximos textos falaremos sobre o que é de fato um Outsider, e as implicações de pensar na arte cinematográfica como um Outsider. Até semana que vem!