Aqui estou eu às três da manhã, encarando o computador, quando me deparo com a notícia: ‘Homem baleado por não entregar comida na porta do apartamento do cliente.’ E o cliente era um policial. Não estou apontando o dedo e dizendo ‘é sempre a polícia!’, até porque não é exatamente sobre a polícia que quero falar. Mas, de fato, trata-se de um policial, um funcionário do estado, que achou por bem pegar sua arma e atirar sob o argumento de que sua comida não foi entregue.
Em seguida, um comentário de um jornal dizia: ‘Ele se achou no direito…’ Ele não achou, ele agiu, sabia que podia agir e sabia no que isso resultaria. Mas o ponto ainda não é julgar a ação do policial.
Afinal, qual é a medida da força em uma sociedade que tenta se justificar como pacífica?
Essa frase é bastante perspicaz e devemos guardá-la. Temos a polícia como mediadora de conflitos, buscando alguma organização social. É legado da polícia o poder do estado, inclusive o bélico, através do porte de arma, sob alguma regulamentação desse uso, seja particular ou em serviço. O debate sobre o uso de câmeras pela polícia, por exemplo, ressurge com o contra argumento de que os policiais não são valorizados, e que não têm armas, ou mais equipamentos e assim por diante. No final, é sobre a legitimação e a contenção da força.
E eu me pergunto, eu sou igual a esse cara que baleou o entregador? Temos os mesmos direitos? E se eu for racializar, isso muda alguma coisa? Quanto vale a minha palavra quando confronto o estado?
Por favor, de forma alguma estou defendendo a ideia de que os grandes monopólios econômicos devem cuidar de tudo, ou que devemos adotar a ideia de um estado mínimo, ou que as grandes viradas tecnológicas não são financiadas pelo estado. Reconheço tudo isso até este ponto, mas as perguntas continuam se acumulando: Quanto vale minha palavra quando enfrento o estado para entregar um lanche?
E novamente, ainda nem racializei o caso, mas alguém tem dúvida?
Seguindo adiante, há uma peça chamada ‘Macacos’ do ator e diretor Clayton Nascimento, que explora também a origem da polícia e sua construção de forma detalhada. Mas não se preocupem, não darei spoilers sobre a peça.
Na libertação dos escravizados, havia uma preocupação com a quantidade de pessoas libertas, e, para garantir a segurança do que se pretendia como uma nação, criou-se uma guarda para a corte. Os libertos tinham toque de recolher e, se fossem vistos na rua pela guarda da corte fora do horário permitido, inicialmente deveriam portar o documento de alforria. “Qualquer semelhança com a mamãe perguntando se está carregando o documento, talvez, não seja mera coincidência.”
A descrição de quem era procurado era muito clara, e não se podia portar qualquer objeto que pudesse ser interpretado como uma arma, sob pena de morte. Novamente, qualquer semelhança talvez não seja mera coincidência.
Agora, quando começamos a entender que, se a polícia foi criada para proteger a corte, o patrimônio, e com o tipo de inimigo já declarado, fundamentalmente fica mais uma pergunta, aqui é um país violento, ou pacífico? E para usar a palavra ‘pacífico’, eu vou dar um exemplo do ex-chefe de polícia civil Hélio Luz: ‘O melhor exemplo de que esse país é pacífico é a Rocinha e o Golf Club no Rio de Janeiro, se esse país é violento, como é que se circula por ali? Se houver qualquer problema, sobe a favela, qualquer questão, sobe a favela.’ A velha e eficiente política da contenção, por isso aquele espaço existe, embora os emboras, pacificamente.
A política de contenção é eficiente, a política de repressão é muito eficiente. Diante da diferença e do tipo de convívio, pode-se dizer que é sim pacífico.
Tudo isso para ilustrar que: Quando voltamos à cena do começo, o rapaz que pediu a comida, imbuído de todo esse histórico construído ao qual falamos, cumpriu seu papel na busca de satisfazer seu desejo, usando qualquer força necessária. O rapaz que tentou entregar foi até onde achou que teria algum direito, o que é óbvio que não teve, e assim terminamos. O atirador em casa pedindo outra coisa para comer, o baleado no hospital sem poder trabalhar e sustentar-se por um bom tempo, e a vida segue como “deve” seguir.
Entendeu agora a pergunta?
Qual é a medida da força em uma sociedade que se julga pacífica?”