Cultura é um fato social vivo, está sempre em movimento, nunca um elemento repetitivo ainda que detenha traços tradicionais que se mantenham similares em suas manifestações ou execuções anteriores. A cultura sempre se renova.
Os estudiosos da memória humana afirmam que sempre que lembramos de algo ocorrido conosco, recordamos na verdade da última vez que relatamos eles, algo como lembrar-se da lembrança, e por isso algumas informações e detalhes são perdidos, novos acrescentados ou até confundimos lembranças, mesclando-as.
De certa forma acontece o mesmo com a cultura. Para que ela possa viver e continuar manifestando-se precisa incorporar novos elementos, minimizar outros e também refina-los, é assim que ela sobrevive ao tempo, assim ela resiste, se adaptando, se aprimorando, a cultura fortalece sendo antropofágica, pois cada nova geração, cada indivíduo que dela faz parte, acrescenta um detalhe, um jeito, um toque pessoal ou coletivo que a faça funcionar. A cultura para ser viva precisa respirar, ser oxigenada.
Talvez o Brasil seja o país que possui os conjuntos culturais mais diversos do mundo, com elementos e colaborações que tornam suas manifestações as mais ricas possíveis, e isso porque está no ethos da sociedade brasileira esse antropofagismo que devora e absorve os mais diferentes sentidos.
Isso significa dizer também que, de certa forma, assimilação e apropriação são conceitos inevitáveis, ainda mais em uma sociedade que cada vez mais se desenvolve no sentido de eliminar fronteiras.
Quero trazer desta vez o recorte do carnaval para pensar cultura.
Em um trecho da letra de Voz Ativa, música de 1993 do Racionais Mc’s, Mano Brown brada: “O carnaval era a festa do povo? Era, mas alguns negros se venderam de novo (…)”. Essa é uma reclamação recorrente há mais de 40 anos, desde antes do Sambódromo carioca ter sido construído em 1987. A verdade é que por ser uma festa popular, entre nós populares sempre se criou a ideia de que o carnaval fosse um evento em que a cultura negra fosse seu constitutivo, e não a ideia de que ele incorporava em si elementos da cultura negra. Porém, ainda que extremamente elitizado, o carnaval ainda é uma festa do povo, mas que no decorrer dos anos vem gradativamente apartando de si a estética negra.
Em seu texto, A categoria político-cultural de Amefricanidade, Lélia Gonzales nos traz a ideia de que o racismo a brasileira parte da negação deste próprio racismo, produzindo representações, práticas e saberes estereotipados sobre os negros. Não é de se espantar que a principal festa popular do país e, talvez a maior festa popular do mundo, sendo representada principalmente pela cultura negra, sofresse no decorrer dos anos um esvaziamento desta característica por conta de sua representação. A contribuição negra e ameríndia na cultura brasileira sofre seguidos apagamentos e é constantemente invisibilizada, estereotipada e inferiorizada frente a uma necessidade de assimilação da cultura euro-estadunidense, uma necessidade de branquear costumes para que estes pareçam menos exóticos a um público externo e que também forneçam uma sensação de saciedade dos gostos de classes abastadas que desejam sempre se apartar dos grupos sociais popularescos que compõem a nação.
Ao fim dos anos 1990 e durante boa parte dos anos que seguiram o século XXI, o carnaval tornou-se uma festa _ pelo menos ao meu gosto _ modorrenta, esvaziada de sentido, principalmente em sua representação máxima na mídia, que são os desfiles de escolas de samba. Os temas, muitos deles patrocinados por prefeituras municipais, alguns por grandes empresas, demonstraram o ocaso da festa, tornando-se esquecíveis, padronizados demais excluindo o caos criativo. Como que para agradar uma crescente fatia da população que radicalizou-se em um pensamento fundamentalista religioso, os enredos que traziam a cultura negra e consequentemente a religiosidade afro-brasileira foram sumindo também, até que veio o Exú da grande Rio.
Exú é a boca que tudo come. Um dos itans de Exú nos conta que Exu, quando ele nasceu, teve uma fome sem fim e seus pais, Orunmilá e Iemanjá, lhe davam de tudo para aplacar sua fome, mas sem sucesso. Com uma imensa bocarra, Exú devorava tudo que via. Grãos, frutas, verduras. Ofertaram aves, peixes, quadrúpedes, bois inteiros, e até um búfalo velho da carne bem dura trouxeram, pra ver se aplacava a fome sobrenatural do recém nascido, mas nada saciava sua fome de Exu.
Exú devorou pessoas e até sua própria mãe e ameaçava devorar o mundo inteiro até que com uma espada afiada, Orunmilá, Orixá do destino, o partiu ao meio e de cada banda nasceram dois outros Exus, iguaizinhos ao primeiro. Isso se repetiu com Orunmilá desferindo outros golpes de espada e de cada pedaço de Exú saindo mais Exús, até que viraram uma multidão e então fizeram um trato, pois Orunmilá compreendeu que não havia meio de vencer quem já tinha provado o gosto de tudo que existe e como deter aquele que faz os mundos girarem? Orunmilá então cessaria com os ataques e Exu se comprometeria a devolver tudo que engolira. Daquele dia em diante, todos os Exus, produzidos a golpe de espada, se espalhariam pelo mundo, com a obrigação de zelar cada qual por um homem e o Orixá que lhe é protetor. Exu é o único Orixá que não recusa comida de nenhum tipo. Como tudo devorou, tudo compreende e aceita, tudo que existe está incorporado à sua própria natureza profunda. Exu não estranha nada que é humano pois como tudo devorou, tudo compreende e aceita, tudo que existe está incorporado a sua própria natureza. Essa é a beleza da antropofagia cultural.
O impacto do enredo da Acadêmicos da Grande Rio com o enredo “Fala, Majeté! Sete Chaves de Exú” em 2022 ressoou como a abertura de uma grande gira. Reacendeu um sentido de diversidade cultural no carnaval, trouxe a cultura negra novamente para o front e parece ter inspirados novos temas, após ele tivemos a Imperatriz leopoldinense com o enredo: “O Aperreio do cabra que o excomungado tratou com má-querença e o santíssimo não deu guarda” que contava a fábula sobre a morte de Lampião à luz da cultura do cordel em um Nordeste multicolorido, e em 2024 a Viradouro trouxe o enredo:” Arroboboi, Dangbé” onde homenageava a força das mulheres negras, as guerreiras Mino, do reino Daomé, representadas pela serpente vodum. Para o ano de 2025, os temas variam entre a representação da Jurema, líderes quilombolas, religiões afro-brasileiras, a cultura paraense entre outros.
Entendo que os desfiles da Apoteose são apenas um recorte da imensa colcha que é o carnaval brasileiro, mas insisto que eles são uma vitrine e incide matizes coloridas sobre a imagética do que é a festa e sua renovação lança feixes de luz sobre o futuro e suas possibilidades. É provocativo e instigante ao mesmo passo que animador observar que à medida que o popular volta a ser a força motriz da criatividade a cultura respira novamente, abraça o caótico e se expande para além das travas criativas.
A doutora Marimba Ani disse no livro “Yurugu — Uma Crítica Africano-Centrada do Pensamento e Comportamento Cultural Europeus”: “Sua cultura é seu sistema imunológico”, sendo que a cultura negra não opera em uma estética xenófoba, higienizada e excludente, e por isso ela respira e sobrevive.
Vários caminhos e um só destino.
Fontes:
Gonzales, Lélia. A Categoria Político-Cultural de Amefricanidade”. In. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro (92/93): 69-82, jan./jun. 1988.
Ani, Marimba. Yurugu — Uma Crítica Africano-Centrada do Pensamento e Comportamento Cultural Europeus. Africa World Press, 1994