Poucas pessoas procuram entender como a arte pode ser mais livre a partir de uma perspectiva independente, ou mesmo autônoma. Quando se busca a liberdade, é mais comum que se busque caminhos de existência, e isso inclui financiamento, mais soltos, mais difíceis. Fazer o que todo mundo faz, falar o que todo mundo fala e meramente replicar o que o mercado quer, pode te ajudar a fazer dinheiro, mas dificilmente trará algo autêntico do coração para dizer às pessoas, ao mundo. Buscar o máximo possível de dinheiro imediato, te fará, necessariamente, falar sobre o que todo mundo fala e então sua autenticidade será zero.

Um coletivo de pessoas pretas que buscou o caminho alternativo da autenticidade foi a Black Audio Film Collective, um dos movimentos mais revolucionários do cinema contemporâneo. Formada em 1982, em Londres, a coletividade reuniu artistas negros de diversas áreas entre cineastas, escritores e teóricos que buscavam redefinir a narrativa audiovisual em uma época marcada por intensas tensões raciais no Reino Unido. Entre seus fundadores, destacam-se nomes como John Akomfrah, Isaac Julien, Reece Auguiste e Lina Gopaul. Mais do que um coletivo de produção, a BAFC foi um marco de resistência cultural e política, colocando a autonomia criativa no centro de suas práticas. Talvez sejam um paralelo um pouco menos acadêmico do que a L.A Rebellion, um outro coletivo de voz preta e alternativa de que falaremos mais pra frente.
Um Cinema de Autonomia e Identidade
O pioneirismo da Black Audio Film Collective se manifesta em sua abordagem estética e filosófica. Não se tratava apenas de criar filmes sobre a experiência negra, mas de redefinir as linguagens cinematográficas para refletir a complexidade das identidades negras na diáspora. Eles misturavam documentário, ficção e experimentalismo, subvertendo gênros e desafiando as normas do cinema comercial.
A autonomia era o alicerce do coletivo. Não se submetiam às narrativas impostas pelas indústrias cinematográficas dominadas por brancos. Em vez disso, criaram um espaço onde podiam explorar suas próprias histórias e perspectivas sem concessões. Essa liberdade permitiu que seus filmes transcendessem os limites da óbvia denúncia social, mergulhando em questões filosóficas, históricas e artísticas com profundidade.
Conceitos-chave: Memória, Diáspora e Espaço
Entre os temas centrais da produção do BAFC, a memória ocupa um lugar privilegiado. Filmes como Handsworth Songs (1986), dirigido por John Akomfrah, investigam os protestos raciais que abalaram a Inglaterra nos anos 1980, mas fazem isso conectando eventos contemporâneos às histórias de colonialismo e exploração. Mais do que um relato jornalístico, é um poema visual que questiona como as memórias individuais e coletivas moldam nossa compreensão do presente.
A diáspora negra também é central na obra do coletivo. Em The Last Angel of History (1996), também de Akomfrah, o conceito de Afrofuturismo, (que inclusive já abordamos algumas vezes na Revista DBN) é explorado para criar uma narrativa que conecta música, tecnologia e a experiência da dispersão africana pelo mundo. O filme mistura entrevistas reais de músicos, escritores e pesquisadores de ficção científica negra com uma história própria ficcional em que um hacker viaja para o futuro e para o passado na tentativa de explicar a origem do próprio Afrofuturismo. Essa obra magistral de John Akomfrah traz performances e imagens de arquivo em uma reflexão sobre o impacto da cultura negra na construção do futuro, e brinca com uma metalinguagem que borra as margens do documental e da ficção, em uma verdadeira obra ensaísta pouco antes vista.
A coragem de subverter estética e filosoficamente partindo para uma metalinguagem manifesta é algo que somente quem assume a perspectiva independente conseguiria realizar. Investidores sem visão moderna das vicissitudes da cultura, e muito ligados aos poucos tons cinza do dinheiro frio, perdem a visão da capacidade disruptiva que esses filmes tem. Perdem a noção de que quem é de fato autônomo, é o que reconfigura a indústria e lança novas tendências, destituindo inclusive reis antigos. Quem chega primeiro bebe água limpa, mas frequentemente só os mais visionários percebem isto. Você não pode encomendar uma nova tendência, você tem que ter o olhar clínico de perceber essa energia se esgueirando e ganhando território. De certa forma, tem que ter as anteninhas do futuro.
Voltando aos elementos fílmicos em si, outro elemento essencial é o uso do espaço, tanto físico quanto simbólico. Os filmes da BAFC frequentemente desconstroem o espaço urbano para revelar suas camadas ocultas de tensão racial, história e resistência. A cidade, em seus trabalhos, é tanto um palco de opressão quanto de reinvenção cultural.

Uma Estética Revolucionária
Esteticamente, os filmes da Black Audio Film Collective fogem do convencional. Eles utilizam montagem não-linear, colagem sonora e experimentação visual para criar um cinema que é tão desafiador quanto envolvente. A influência da arte contemporânea e da música é evidente, e não é coincidência que o trabalho de membros do coletivo tenha sido exposto em galerias de arte ao redor do mundo.
Isaac Julien, por exemplo, ganhou destaque internacional por suas instalações multimídia, como Looking for Langston (1989), que celebra o poeta Langston Hughes e a rica tradição queer na cultura negra. Com uma abordagem cinematográfica, mas também performática, Julien expandiu os limites do que é considerado cinema.
Legado e Relevância Atual
Embora a Black Audio Film Collective tenha encerrado suas atividades em 1998, seu legado permanece vivo. Os temas que abordaram como racismo, identidade, história e futuro continuam ressoando nas lutas atuais por representação e igualdade. O trabalho do coletivo abriu portas para gerações de cineastas negros, que encontram na autonomia criativa um meio de resistência e autoexpressão. Em uma época em que as vozes negras ganham cada vez mais espaço, revisitar a obra do BAFC é fundamental. Mais do que relembrar seu pioneirismo, é uma oportunidade de se inspirar em seu compromisso com a autonomia e com a criação de um cinema verdadeiramente revolucionário. No cruzamento entre arte, política e identidade, o Black Audio Film Collective continua sendo um farol para quem acredita no poder transformador do cinema. Muitas tendências praticadas hoje à exaustão, foram de fato pioneiras em iniciativas autônomas que tinham liberdade de ser, atrever, ousar e inovar esteticamente. Estamos perdendo isso, todo mundo quer fazer o que já deu certo, mas isso é de fato beber água do volume morto. Todo mundo já fez. Há bastante concorrência. Ao produtor preto, cabe pensar que quando suas vozes são encomendadas, e os melhores temas já são conhecidos, definidos e esperados, isso então não é liberdade. É um emprego.
A Black Audio Film Collective só pode ser a força e a inovação que foi porque não estavam procurando por trends, nem por validação ou aprovação da sociedade, eles não estavam procurando um emprego. Eles tinham algo a dizer, e/ou sensações íntimas a explorar.