Como um movimento estético, político tão ímpar, o Afrofuturismo obviamente chegou no no cinema. Ali, ele se tornou uma fusão poderosa entre ficção científica, cultura negra e especulação sobre futuros alternativos, estabelecendo um espaço essencial para a imaginação negra. Esse movimento utiliza as telas para expressar novas possibilidades, revisitar memórias e explorar realidades paralelas onde a narrativa negra ganha protagonismo em um futuro geralmente ausente ou marginalizado nas representações tradicionais da ficção científica. Para além de seus valores estéticos, o Afrofuturismo no cinema representa uma profunda crítica social e histórica, oferecendo alternativas a narrativas que frequentemente relegaram a população negra a papéis secundários, invisibilizando sua trajetória e importância na construção de mundos futuros.
O Afrofuturismo encontrou no cinema um terreno fértil para crescer, com referências importantes como Space is the Place (1974), do músico e visionário Sun Ra. O filme representa um dos primeiros exemplos de uma narrativa onde um herói negro, encarnado por Sun Ra, se vê numa missão interplanetária para salvar a comunidade negra dos desafios terrestres, oferecendo-lhes um lugar utópico no espaço. Em meio a efeitos e sons que misturam jazz com Sci-fi, Ra rompe com o padrão hollywoodiano da época, onde pessoas negras tinham pouca ou nenhuma relevância em narrativas futuristas. Esse marco cultural exemplifica como o Afrofuturismo desafia a hegemonia cultural ocidental ao colocar o protagonismo negro em um contexto cosmológico, onde a ciência e a espiritualidade convergem, permitindo à cultura negra um lugar entre as estrelas.
Nas décadas seguintes, outras produções expandiram esses temas. Em Welcome II the Terrordome (1995), de Ngozi Onwurah, a diáspora negra é explorada em uma narrativa sombria e distópica que reflete a violência histórica da escravidão e o racismo institucional. A obra utiliza o ambiente futurista para destacar a resiliência cultural da comunidade negra e as lutas pela sobrevivência e identidade em um futuro opressivo. Essas narrativas distópicas afrofuturistas demonstram uma visão profunda sobre os desafios de transpor a opressão e imaginar futuros justos e inclusivos, oferecendo ao público uma lente poderosa para compreender as complexas dinâmicas raciais que marcam tanto o passado quanto o futuro.
Outro exemplo marcante é o icônico Pantera Negra (2018), que se tornou um símbolo moderno do Afrofuturismo ao mesclar a tradição e a inovação em Wakanda, uma nação fictícia africana tecnologicamente avançada. Ao apresentar uma África sem as cicatrizes coloniais, onde a cultura e a tecnologia andam de mãos dadas, o filme rompe com a narrativa de dependência e subalternidade frequentemente associada ao continente africano. Além disso, a estética afrofuturista de Pantera Negra, com figurinos, cenários e tecnologia inspirados em tradições africanas, cria uma visão de futuro em que a identidade negra é celebrada e complexificada, revelando sua diversidade e riqueza cultural.
O cinema afrofuturista vai além da criação de universos fictícios; ele convida o público a repensar conceitos de temporalidade e pertencimento, oferecendo uma estética que se apropria da tecnologia e do misticismo para construir novos futuros. Segundo o crítico cultural Kodwo Eshun, a ficção científica afrofuturista oferece uma oportunidade de desafiar as limitações impostas pelo racismo e pela opressão. Ele descreve como a narrativa afrofuturista permite que as comunidades negras se vejam não apenas como participantes, mas como co-criadores de futuros possíveis, moldando a realidade ao seu redor com uma visão crítica e transformadora.
No campo do cinema experimental, o Afrofuturismo encontra novas formas de expressão ao explorar sons e visuais que desafiam as convenções tradicionais do gênero. Filmes como The Last Angel of History (1996), do coletivo Black Audio Film Collective, apresentam o Afrofuturismo como uma narrativa onde música, tecnologia e espaço sideral se encontram. A produção transforma a experiência musical negra em uma exploração intergaláctica, usando figuras como George Clinton e Lee Perry para criar uma narrativa onde o espaço se torna um refúgio para o imaginário negro. Esse cruzamento entre o som e a imagem traduz o Afrofuturismo para uma linguagem experimental que transcende os limites da narrativa linear, tornando o cinema um meio essencial para vislumbrar a liberdade que o movimento propõe.
Ao longo das décadas, o Afrofuturismo no cinema se consolidou como um instrumento não apenas para o entretenimento, mas também para a afirmação cultural, resistindo aos discursos hegemônicos que limitaram a representatividade negra na ficção científica e nos gêneros especulativos. No entanto, mais do que explorar futuros alternativos, o Afrofuturismo cinematográfico é uma afirmação da presença e importância da comunidade negra na construção de realidades futuras. Seja por meio de histórias distópicas ou utópicas, o Afrofuturismo revela o potencial criativo e transformador de narrativas negras no cinema, oferecendo um vislumbre de um futuro onde a cultura negra é não apenas visível, mas fundamental.
Essa evolução no cinema reflete a crescente valorização do Afrofuturismo como movimento cultural, estético e político, onde o futuro é um espaço de liberdade e expressão para a comunidade negra.
O cinema afrofuturista brasileiro, embora ainda recente e em desenvolvimento, traz uma visão única e poderosa ao movimento global, integrando as especificidades da diáspora africana nas Américas e as questões sociais e culturais que marcam a história do Brasil. Essa expressão cinematográfica utiliza a ficção científica para reinterpretar as narrativas afro-brasileiras e indígenas, explorando temas como resistência, ancestralidade e identidades fragmentadas. Obras brasileiras afrofuturistas buscam não só projetar futuros alternativos, mas também revisitar e reinterpretar o passado e o presente, destacando as questões de raça, território e memória.
Um exemplo significativo é o filme Branco Sai, Preto Fica (2014), de Adirley Queirós, um filme de Brasília, que usa a ficção científica para discutir a violência racial e policial que atinge a população negra periférica no Brasil. Inspirado em um caso real ocorrido na Ceilândia, o filme apresenta uma narrativa onde o passado e o futuro se misturam, contando a história de dois sobreviventes de uma brutalidade policial que passaram a viver com limitações físicas em decorrência do ocorrido. Eles planejam uma vingança que envolve viagens no tempo e tecnologias de resistência, construindo um enredo onde a luta por justiça se desloca para uma dimensão atemporal e futurista, abordando o tema de maneira inovadora e simbolicamente rica.
A presença do Afrofuturismo no cinema brasileiro, embora ainda emergente, demonstra uma capacidade de abordar questões históricas e contemporâneas com uma estética que une tradição e inovação. Essa estética pode ser observada em curtas e produções independentes que, a partir de uma linguagem visual única, evocam a conexão com o ancestral e o tecnológico.
Destacam-se ainda, obras como Bom Dia, Eternidade e os curtas Quintal de André Novais Oliveira e Rapsódia Para um Homem Negro, de Gabriel Martins. Infelizmente, esses filmes são a quase totalidade da ficção científica negra no Brasil. Embora nossa literatura afrofuturista seja a segunda maior do mundo atrás apenas dos EUA, nosso investimento em afrofuturismo no cinema é ínfimo. Apenas Bom Dia Eternidade e Branco Sai Preto fica ganharam como longa metragens que puderam ser exibidos nos cinemas. Um novo filme afrofuturista, Vozes Rudes em Neon, do premiado roteirista e diretor Rodjéli Ra está em fase de captação buscando parceiros, e promete revolucionar o Afrofuturismo no Brasil com uma estética e profundidade filosófica jamais vistas por aqui. Uma história de amor em que os protagonistas passam por uma jornada de terror e traições, em um cenário cyberpunk.
O cinema afrofuturista brasileiro revela-se, assim, um meio essencial para a produção de narrativas que transcendem as limitações impostas pela história colonial e pelo racismo. Ele se expande ao incorporar elementos locais, como o realismo fantástico e as expressões culturais afro-brasileiras, refletindo a riqueza e a complexidade da experiência negra no Brasil. Ao integrar a tecnologia, o misticismo e a resistência em seus enredos, o cinema afrofuturista brasileiro continua a explorar novos caminhos, reafirmando a cultura negra como uma força criativa capaz de imaginar e construir futuros inclusivos e inspiradores.