A minha intenção quando iniciei esse texto era chegar em outro lugar com ele.
Há muitos anos atrás, coisa de uns vinte, li um livro que me marcou de uma forma triste, tanto que até os dias de hoje quando penso nele, fico sério e reflexivo. o livro contava uma história dramática e dolorosa de uma família de mulheres negras no Haiti, que datava de quatro gerações desde o período escravagista, mulheres que lidaram com muito sofrimento, perdas, abandono. O final agridoce da história não amenizou o que absorvi ali. Eu não curto histórias de sofrimento e drama excessivo com pessoas negras, me dá uma sensação de perpetuação do sofrimento na vida real, e a realidade já é difícil demais para nós, então em mim tais histórias funcionam como a morte da esperança.
Porém, mesmo esforçando-me para não ficar preso à memória daquela história, um pequeno detalhe daquele livro me pegou. Um ensinamento que era passado de mãe para filha ao decorrer dos tempos, e me foi passado através do livro, e sempre me deparo com ele. O ensinamento era: “O negro precisa de ter duas faces.” Uma para apanhar e outra para guardar para si. Terrível, não?
Lembro-me de que ainda na minha infância ouvia jargões dos mais velhos com quem eu convivia, e um de recorrência constante era o que dizia que “o negro tem de ser duas vezes melhor”. Aquilo me deixava triste, em minha inocência eu entendia que eu teria de me esforçar mais do que eu pudesse conseguir para ser equivalente a um branco, e sim, sob diversos aspectos de análise, não é uma mentira.
Em meu primeiro curso universitário, o de Comunicação Social na Estácio de Sá, cujo não consegui concluir por falta de grana, estabeleci debates de alto nível com alguns professores, estava fervilhante em meus questionamentos e os professores adoravam minhas provocações, entre eles havia um professor argentino que no final do terceiro período se lamentou por não termos tido mais tempo de conversa, e neste dia, descendo as escadarias da instituição fui parado por uma moça branca, de uns vinte poucos anos, toda vestida de preto, botas, pulseiras com espinhos de metal, não sei se era emo, punk ou headbanger, mas ela me parou e disse: “Até que você é um preto inteligente.” Fiquei sem resposta. Então eu fiz como faço desde sempre, quando desdenho de algo que acho idiota, dei um sorriso de meia boca, entre o zombeteiro e o suspiro de cansaço, e saí, sem falar nada porque as vezes as coisas te pegam de surpresa e você não tem o que dizer, e tudo bem um foda-se de vez ou quando.
E é muito sobre não poder pirar. Subverter com precisão, ser estratégico até no emocional, ter duas faces. Todo nascido negro drama é um “loco que não pode errar” , porque muito do que hoje é chamado de cultura de cancelamento, para o negro sempre foi pré -requisito curricular. Mesmo que encralacrados dentro de uma sociedade que nos força ao erro.
Nós precisamos acreditar em nós mesmos para obtermos sucesso. Esse é o primeiro passo para vivermos à nossa maneira sem a necessidade da validação de alguém ou de qualquer coisa. Por que não alcançarmos tudo o que desejamos? Por que não? O que nos impede de nos tornar as pessoas que desejamos ser e de alcançar tudo o que procuramos?
Aqueles que acreditam em si mesmos estão mais perto do sucesso do que aqueles que não acreditam. Não é esperado de ninguém que entre em uma luta esperando perder, mas a maioria das pessoas negras entra na vida esperando fracassar, um campeão é um campeão antes mesmo de entrar no ringue, não se trata de acreditar que se possa ganhar, mas de saber que irá ganhar. Um Ori vencedor, vencerá.
Mas sim, estamos em uma sociedade que nos força ao erro, que retira de nós a energia para lutar, nos ensina a desacreditar de si mesmos e nos dá de presente a síndrome do impostor. A autossabotagem, a percepção errônea de incapacidade, de demérito. E este é apenas um dos obstáculos. Nos retira o fogo.
Mas ainda que estejamos em restos de brasa, nos lembremos de Xangô e de como ele reacende o nosso fogo. Xangô é a deificação da vontade. A vontade é por natureza livre. É o asé (poder) de Olodumaré (Deus Supremo) que vive dentro de nós. Xangô é a representação da força vital e é referido como o Imperador, pois a vontade (como o seu poder de fazer) é o Imperador da sua vida. Xangô ama a vida, ele canta, dança, gargalha, transa, festeja, come e bebe. E ele é assim por ter certeza de quem e do que ele é. Esse exemplo de força não é arrogância, é ciência de si, precisamos ser lúdicos, mas também focados e estratégicos. As histórias tristes não precisam ser nosso ponto de partida, afastar-se delas não é alienar-se delas, é não tê-las como centro, mas mesmo imbuídos de tal consciência ainda é preciso termos duas faces, pois os desafios e obstáculos estão a espreita, precisamos ser estratégicos.
Faça o que for preciso para ser vitorioso. Trabalhe em si mesmo, invista tempo, dinheiro e esforço para se aperfeiçoar mais do que qualquer outra pessoa poderia. As pessoas parecem pensar que o sucesso é algo que está fora delas, e não, o sucesso e a grandeza começam dentro de nós. Não é o que obtemos que nos torna bem-sucedidos, mas é quem nos tornamos. Se não acreditarmos em nós mesmos, por que mais alguém deveria. Devemos viver a vida com um padrão mais alto de nós mesmos e o mais alto padrão que podemos nos dar é sair para o mundo e agir contando com nós mesmos.
O livro trazia um final agridoce, a última descendente daquela família era uma mulher lésbica, que indiferente a toda sociedade ao seu redor decidiu viver seu amor. Continuou lavando a roupa dos brancos ricos e morando em uma favela, em um pequeno barraco de madeira no quintal de sua família, rodeada por uma plantação de bananas, mas iniciava todas as manhãs tomando café em uma caneca de ágata ao lado de sua esposa, as costas marcadas pelos fios da chibata não tiraram dela a sua grandeza.
“dedicado a Ariella Paixão e aos que enfrentam guerras constantes”.