Talvez você não concorde com a premissa, afinal, a Netflix explodiu em faturamento justamente ali. Talvez você também não conheça os números e o contexto. O que acontece é que antes de 2016 a Netflix mais licenciava conteúdo do que produzia material original. Quero dizer com isso que material original é ruim? Opa, acho que já deu pra perceber pelos textos anteriores, que eu não defendo que o oposto de uma conclusão errada é necessariamente a certa. O oposto de errado frequentemente continua sendo errado. O “certo” ou o desejável é sempre um beco estreito.
Material original não é “melhor” nem “pior” a priori das situações. É preciso entender as implicações diferenciais em cada contexto, suas razões e suas consequências. Até antes de 2016, a Netflix ainda buscava competir dentro de um cenário global de filmes. Sua régua era o mercado mundial em que a qualidade de seus filmes precisava bater de frente na mesma moeda, e na mesma (ou aproximada) linguagem.
Em 2015 haviam aproximadamente 120 produções licenciadas, com 89 produções originais. No ano seguinte, os dados se espelharam invertendo: aproximadamente 129 originais com menos de 80 licenciamentos. Nos anos seguintes a tendência se acentuou. Ainda que as produções originais quase tenham dobrado, os licenciamentos diminuíram. Isso mostra não só a intenção da Netflix de priorizar seu conteúdo original, como também sua capacidade de dominância para consolidar essa intenção. Significa que a plataforma já estava segura suficiente de ter quase que um mercado próprio, fidelizado.
Essa condição massificou sua produção, afinal, em direção à uma marca forte. Existem categorias técnicas que a identificam. É possível assistir a maioria das produções Netflix às cegas e acabar descobrindo que elas saíram de lá. Faça o teste com sua família, há uma “cara” bem específica e previsível nestes filmes. Isso é a luz e o rastro da marca.
Esse é exatamente o contrassenso: em exibidores e produtores que lidam com pluralidade e variedade nos produtos de um mercado, como o Audiovisual a variedade do produto nem sempre é tão desejada. Especialmente quando o mercado já está garantido. Há um limite de variação pretendida, afim de que se possa definir um modelo específico que o destaque dos demais. Se a Netflix chegou primeiro nos streamings e abocanhou os melhores modelos de abrangência econômica-cultural, ela tenderá a querer mantê-lo.
Esse fenômeno de massificação, isso acontece não porque conteúdo original é pior do que licenciados, ou porque a Netflix não sabe fazer filmes como os apressados podem concluir, mas especificamente porque ela deixou de precisar concorrer com o mercado aberto. Se ela já consolidou domínio em áreas chave e já mapeou o grosso do comportamento de consumo audiovisual, ela não precisa arriscar mais. Ela tende a querer fornecer o melhor modelo de custo benefício econômico, evitando qualquer modelo que seja desviante e arriscado, ou que não a identifique como marca.
Uma das lições a quem está preocupado única e exclusivamente com a qualidade dramatúrgica e técnica do material é esta: o Cinema é legitimamente um lugar de risco, e quem quer cada vez mais qualidade e variedade nas formas, precisa escolher correr cada vez mais risco. Se houver garantia de escoamento, a produção quererá incentivar a produção de somente alguns modelos pré-prontos.
A Netflix através de pioneirismo e uma leitura muito competente de dados acabou garantindo bons níveis de escoamento. Os assinantes estão lá, os filmes estão saindo. As pessoas que já nem olham o cartão de crédito cobrando 35 reais… bem, eles assistem. Ainda que muitos assinantes saiam em algumas ondas de baixa, a Netflix ainda encabeça muitos dados de consumo.
A crítica da reserva de mercado não se aplica às cotas de telas para filmes brasileiros que vem sendo implementadas. Há mais condições que interferem a conclusão de que cotas seriam negativas neste cenário. Isso porque as condições de competição não são iguais, então as cotas são um justo e temporário paliativo para o desenvolvimento de uma indústria. Farei um texto especificamente sobre isso, prometo. Fiquem atentos à essa coluna.
O que isso pode nos ensinar em termos de qualidade audiovisual, mercado e produção independente é que garantia de escoamento no mercado pode ser prejudicial à qualidade, pois indivíduos não podem competir contra blocos. Se uma iniciativa isolada resolve correr risco e fazer algo diferente, ele perde para o domínio das tendências e dos blocos. É aí que os filmes mais arriscados, originais tecnicamente falando, mais fora da casinha mas ainda assim populares, sequer conseguem margem ou chance pra existir. Os proponentes destas propostas não são escolhidos, são considerados riscos desnecessários.
A saída seria que existissem outras plataformas de nicho, com um aval de marca específica que pudesse contrabalancear esse sistema. Isso não é um problema nos países que detém indústria audiovisual própria como Bollywood e Nollywood, tanto é que a cota de tela é dispensável nestes. É pela indústria que a cultura desses países promove, espontaneamente, um contrabalanço cultural à massificação do produto audiovisual. Ali, a concorrência é leal. Na Índia, a Netflix não submete Bollywood, mas a estimula. Falaremos mais disto nos próximos textos.