Negros não são unidos. E de boa? Isso não é ruim.
Desde muito tempo, vez ou outra escuto essa de que “os negros não são unidos”, e
sempre me parece uma reza pobre entoada com o estômago, irônico que a conclusão
sempre é proferida por alguém que se exclui da sentença, eles são assim, eu não, mas os
negros (totalidade) não são unidos. E sim, não somos uma unidade, nunca fomos, e tudo
bem com isso. Muitos de nós possuem objetivos comuns, o que nos reforça como
comunidade, como coletividade e penso que tudo se caminha por aí. Impor a nós essa ideia
de unidade parece-me uma armadilha cruel, que nos nega nossa subjetividade, ou tenta
domá-la.
Nossos antepassados vieram para as Américas sequestrados em tumbeiros, e ali, dentro
daqueles porões, em condições sub-humanas haviam vários povos, nações, culturas
diferentes, que uma vez jogados em terras estranhas, eram vistos pelos seus opressores
como animais desprovidos de alma, de particularidades.
A ideia de individualidade algumas vezes traz em si um espectro negativo, como um reflexo
comportamental egoísta, solipsista. E ela parece em muitos momentos vedada a entes
negros, retirando de nós até a possibilidade de discordarmos. Nossas dores são comuns a
nós, nossos objetivos, gostos e sonhos não precisam ser. Uma pessoa negra pode gostar
de Samba e detestar Reggae, gostar de Rap e odiar Funk, gostar de todos estes gêneros
musicais e não remeter esteticamente a nenhum deles. Uma pessoa negra pode gostar de
Ópera. Qualquer um destes cenários não fará com que um negro deixe de ser negro. E
sendo negro sua vivência sempre vai se conectar a pontos em comum a outras vivências
negras. Isto nos faz seres individuais dentro de uma coletividade, e em um melhor cenário,
dentro de uma comunidade. E assim sendo, embora tenhamos experiências em comum,
teremos também agendas próprias, desejos, sonhos e objetivos, o que, a qualidade de ser
uma unidade, única ou unida, não nos permite.
Enquanto coletividade ou comunidade, podemos dizer que estamos unidos por um ou mais
objetivos em comum, de forma que isso não exclua de nós a possibilidade de discordar ou
até se abster de pautas e agendas. No que diz respeito a luta negra, para quem luta, o
objetivo final pode se resumir na conquista de uma autonomia plena, e essa autonomia
plena inclusive, dá a possibilidade de outros negros de serem discordantes da pauta negra,
ela liberta e assim sendo, não cobra unidade. Está livre desta crítica.
A tradução do termo Ubuntu sofreu várias flexões de sentido no ocidente. Isso porque o
primeiro livro em língua portuguesa e americana que trouxe este conceito é chamado
“Ubuntu! Eu sou porque nós somos de 2003 e foi escrito nos EUA por Stephen Lundin e
Bob Nelson, dois profissionais da área de recursos humanos que não se mostraram muito
interessados em um aprofundamento filosófico e linguístico. Neste livro eles cravam a ideia
do “eu sou porque nós somos” e pronto. Estes dois escritores buscaram essa expressão em
um livro chamado “African Religions and Philosophies” de um missionário cristão de nome
Jonh S. Mibit, em que este trata da noção familiar no prisma da incursão do cristianismo nos
povos tradicionais africanos, e o livro de Mibit nada tem a ver com Ubuntu. A partir do texto
de Lundin e Nelson, a tradução foi encampada mundialmente, inclusive com grande
aceitação no continente africano.
Apesar de bonito o conceito filosófico “Eu sou porque nós somos”, ele não aprofunda e não
expressa a totalidade do significado de Ubuntu. O professor e pesquisador de Filosofia
Africana da UnB, Wanderson Flor do Nascimento, explica que dentro de uma perspectiva
interna do continente africano, Ubuntu é uma das muitas palavras que os povos do tronco
bantu – neste caso específico shosa e zulu – usam para se referir a humanidade. Para eles,
humanidade tem a ver com a característica que nós temos de estar em relação com as
outras pessoas. Os de língua bantu tem várias palavras para ser humano: uluntu, untu,
umuntu, bantu e ubuntu entre outras. As características principais destas expressões se
propõe tratar os seres humanos como interligados e interdependentes, o que cria uma
responsabilidade de todas as pessoas para com todas as pessoas.
Ubuntu representa o fato de que nós estamos em uma relação de interdependência e
interligação que torna todo mundo responsável por todo mundo, e que portanto o meu
ancestral, ao ter o modo de ser Ubuntu, se esforça para que as suas dificuldades não
cheguem a mim, e eu me esforçarei para que as minhas não cheguem aos meus.
Que a dor que me feriu não siga ferindo aquelas e aqueles que vem depois de mim.
Ubuntu.
A interdependência e a interligação que temos, alimentamos e construímos, não nos impõe
unidade, ela nos pede responsabilidade. Usar a ideia de que não somos unidos como uma
leitura crítica para mim é uma das muitas armadilhas no caminho, mentiras que constroem
verdades, não estamos aqui para sermos unidos no sentido de que anulemos a nossa
individualidade. Estamos para sermos responsáveis uns pelos outros no limite de nossas
possibilidades mirando um objetivo, ou vários, como uma comunidade.
E você é livre para discordar.
Eu sou porque nós somos – Stephen Lundin
African Religions and Philosophies – Jonh S. Mibit