Nos últimos tempos, muito se tem falado sobre autocuidado, e não é por acaso. Vivemos num ritmo cada vez mais acelerado, sob múltiplas demandas e expostos a níveis de sofrimento psíquico preocupantes. Cuidar de si, hoje, não é apenas um gesto de bem-estar: é um compromisso ético. É uma forma de resistir, de se preservar e de não se perder de si mesmo em meio ao caos.
A Organização Mundial da Saúde (2021) define autocuidado como “a capacidade dos indivíduos, famílias e comunidades de promover a saúde, prevenir doenças, manter a saúde e lidar com doenças e incapacidades com ou sem o apoio de um profissional de saúde”. Em outras palavras, trata-se de algo mais amplo do que parece: desde gestos simples de cuidado com o corpo até movimentos profundos de escuta e elaboração do próprio sofrimento.
Na psicologia, o autocuidado é compreendido como um processo que envolve reconhecer limites, dar nome às emoções, buscar apoio e construir espaços internos e externos que favoreçam o bem-estar. O autoconhecimento, nesse contexto, não é luxo — é fundamento. Carl Rogers (1961), por exemplo, afirmava que a aceitação incondicional de si mesmo é um passo essencial para uma vida autêntica. Conhecer-se é o que nos permite compreender nossas necessidades, cuidar das nossas dores e sustentar escolhas mais coerentes com quem somos.
Nathaniel Branden (1995), autor conhecido por seu trabalho com autoestima, reforça essa ideia ao afirmar que ninguém desenvolve autoestima saudável sem consciência de si. E isso implica encarar tanto os pontos fortes quanto as fragilidades com honestidade e compaixão. Afinal, não é possível cuidar bem daquilo que não se valoriza.
Paulo Freire (1996) também nos ajuda a pensar: cuidar de si é um ato político. Quando ele diz que “cuidar de si é também cuidar do mundo”, nos lembra de que o autocuidado não pode ser confundido com egoísmo ou um consumo desenfreado de produtos e fórmulas mágicas. Cuidar de si é também um compromisso com o coletivo, com vínculos mais saudáveis, com relações mais humanas e com uma sociedade menos adoecida.
O cuidado no cotidiano
Engana-se quem pensa que autocuidado depende de grandes viradas. Às vezes, ele mora no básico: dormir bem, se alimentar com atenção, cultivar pausas, dizer “não” quando necessário, buscar ajuda quando algo aperta. O importante é fazer disso um gesto intencional, com respeito às próprias singularidades.
A seguir, compartilho algumas práticas que costumo destacar em meus atendimentos, durante 20 anos de experiência clínica, e reflexões sobre saúde mental:
1. Nomear as emoções: Como lembra Brené Brown (2018), colocar em palavras aquilo que sentimos nos ajuda a lidar com o que, muitas vezes, parece confuso demais. Um diário emocional simples, ao final do dia, já pode ser um bom começo.
2. Estabelecer limites: Nedra Tawwab (2021) nos alerta: sem limites claros, abrimos espaço para o esgotamento. Aprender a dizer “não” é difícil, mas é também uma forma de dizer “sim” à própria saúde.
3. Buscar apoio profissional: Reconhecer quando não dá mais para lidar sozinho e buscar psicoterapia é, muitas vezes, o primeiro passo para recomeçar com mais clareza e força.
4. Cuidar do corpo e do descanso: Práticas como mindfulness, defendidas por Jon Kabat-Zinn (2003), mostram o quanto desacelerar e reconectar com o corpo é parte importante do cuidado emocional.
5. Desconectar-se: O excesso de estímulos e informações — especialmente nas redes sociais — adoece. Criar pausas e filtros é também uma maneira de se preservar e de manter a mente mais limpa.
6. Observar o diálogo interno: Muitas vezes, a voz mais dura que ouvimos é a nossa. Mudar esse discurso exige prática, mas transforma o jeito como nos tratamos e, por consequência, como vivemos.
Autocuidado é construção
Não existe fórmula única. Cada pessoa precisa construir, a partir da própria história, vínculos e contexto, formas de cuidado que sejam possíveis e sustentáveis. Autocuidado não é checklist: é postura. É estar atento a si, assumir responsabilidade sobre o que se sente e se precisa, e se tratar com mais gentileza.
Como nos lembra Michel Foucault (2006), o cuidado de si pode ser entendido como uma forma de resistência. Em tempos em que tudo parece pedir mais produtividade e menos presença, cuidar de si pode ser um gesto radical, o gesto de permanecer inteiro, mesmo quando tudo tenta nos fragmentar.
Por fim, vale dizer: reafirmar a importância do autocuidado não é desobrigar o Estado ou as políticas públicas do seu papel na garantia do direito à saúde. Pelo contrário. O cuidado individual ganha ainda mais força quando se alia ao cuidado coletivo, à construção de relações mais humanas e à luta por condições mais dignas para todos.