Com o lançamento simultâneo dos romances digitais Ainda sou mar e A orquídea e o beija-flor, o jornalista e escritor Patrick Selvatti amplia o alcance de sua ficção ao colocar em primeiro plano discussões urgentes sobre raça, desejo, poder e pertencimento. Disponíveis na Amazon Kindle e no catálogo do Kindle Unlimited, as obras marcam uma nova fase da produção literária do autor, que transita entre o drama gay adulto e a fábula política contemporânea para investigar como corpos negros são vistos, desejados, silenciados ou elevados ao símbolo dentro de estruturas sociais profundamente desiguais.

Em registros distintos, mas complementares, os dois livros utilizam personagens negros como eixo narrativo para tensionar imaginários coloniais, fetiches raciais e hierarquias históricas ainda operantes no Brasil e na América do Sul. Seja no espaço íntimo das relações afetivo-sexuais, seja no campo alegórico da fé, da política e da resistência coletiva, a negritude surge como elemento central para compreender as contradições dos mundos retratados — e, por extensão, do próprio presente.
Hiperssexualização
Em Ainda sou mar, romance explicitamente gay e introspectivo, a reflexão racial surge a partir do vizinho do protagonista: um ex-bombeiro negro aposentado, sexagenário, que vive às margens do culto à juventude e ao desempenho sexual no meio gay. Alex carrega no corpo e na trajetória as marcas de uma hiperssexualização constante: ao mesmo tempo em que é desejado pelo estereótipo do “negro viril e bem-dotado”, ele tenta se desvencilhar dessa imagem redutora para reivindicar afeto, escuta e humanidade.
“Figura essencial na jornada do protagonista, o ex-modelo Marlon Petit, um homem loiro de olhos azuis, o personagem explicita a contradição de um sistema que erotiza o corpo preto, mas raramente o acolhe emocionalmente. O envelhecimento de Alex expõe uma camada ainda mais cruel dessa lógica: quando o corpo deixa de performar potência, o desejo alheio se esvai, revelando o quanto aquele interesse nunca esteve dissociado do fetiche racial”, explica Selvatti.
Um dos momentos mais provocadores do romance ocorre quando um personagem branco verbaliza o desejo de ter nascido negro, abrindo espaço para uma reflexão incômoda sobre apropriação, exotização e ignorância histórica. Em outro, Alex desabafa sobre a sua angústia, como homem preto gay, de ser sempre visto como um corpo sexualmente ativo e potente, nunca passivo e afetivo.
Os trechos tensionam fantasias raciais frequentemente naturalizadas — especialmente dentro da comunidade LGBTQIA+ — e desloca a discussão para o campo político e simbólico. Afinal, ser negro no Brasil não é apenas ocupar um lugar de desejo, mas também carregar um legado de violência, exclusão e resistência que não pode ser romantizado.

Um herói de raça
Já em A orquídea e o beija-flor, a abordagem racial assume contornos míticos e alegóricos. O herói da fábula é Beijaflor, um jovem pescador negro, órfão e marginalizado, que se torna liderança comunitária em um país conservador dominado por uma elite branca de origem europeia. Seu maior símbolo é o fato de interpretar Jesus Cristo na Via Sacra local — gesto profundamente político em uma sociedade que associa poder, pureza e autoridade a corpos brancos.
Ao colocar um homem afrodescendente encarnando a figura máxima do cristianismo, a narrativa provoca o imaginário colonial e religioso, questionando quem pode ser visto como sagrado, digno de devoção ou central na história de um povo. “Beijaflor não é apenas um líder ambiental ou romântico: ele é um corpo negro em confronto direto com a herança colonial, religiosa e econômica de um Estado excludente”, defende o autor.
Essa dimensão se amplia com a presença de seus irmãos adotivos, João de Barro e José Pardal, dois meninos angolanos que ficaram órfãos ao tentar fugir com os pais de uma situação de escravidão em uma fazenda de algodão. “A referência direta à escravidão contemporânea conecta a fábula ao mundo real e evidencia que, apesar do tom alegórico, a história se ancora em feridas ainda abertas na América Latina”, acrescenta.
Ao atravessar erotismo, fé, política e fantasia, Patrick Selvatti constrói personagens negros que não existem para cumprir função simbólica rasa, mas para tensionar estruturas de poder, desejo e memória histórica. Seja no corpo envelhecido e fetichizado de Alex, seja na figura messiânica e revolucionária de Beijaflor, a negritude emerge como força narrativa central — não como tema isolado, mas como eixo que redefine afetos, conflitos e destinos.
“Nos dois livros, ser negro não é pano de fundo, mas conflito, identidade e, principalmente, resistência”, conclui o autor.

Mineiro de Lavras (MG), Patrick Selvatti, 46, vive há 23 anos em Brasília. É subeditor do Correio Braziliense, onde também escreve sobre televisão e streaming, além de crônicas e artigos de opinião. Em 2023, foi premiado em um concurso de crônicas e, agora em dezembro, conquistou o primeiro lugar no Prêmio CFA (Conselho Federal de Administração) de Jornalismo. Seus dois novos romances buscam conectar com leitores em diferentes fases e com diferentes interesses, mas com um fio comum: a jornada do indivíduo em busca de seu lugar no mundo, seja desafiando um reino ou as próprias inseguranças.
Serviço:
O quê: Lançamento dos e-books “A orquídea e o beija-flor” e “Ainda sou mar”, de Patrick Selvatti.
Onde: Disponível exclusivamente na Amazon, em formato Kindle.
Valor: Comercializados individualmente, a partir de R$ 15. Leitura gratuita para assinantes do programa Kindle Unlimited.

