Entropia social é um estado de desordem que surge mediante a uma crescente de conflitos e divergências. Este fenômeno, tem o potencial de levar uma sociedade a um estado de total transformação, degradação ou mesmo ao seu fim.
Grandes impérios e sociedades já passaram por este fenômeno. Da Babilônia à França (em seu período monárquico), Roma, Kush entre várias. Em se tratando de humanidade, nenhum povo, nação, reino ou império está livre disto, nenhum sistema dura para sempre, desde tempos imemoriais, a única coisa que se mantém é a máxima de que o poder não deixa vácuos.
O curioso neste fenômeno, é que ele não é perceptível para a sociedade, não acontece de um momento para o outro, pode atravessar gerações. Porém, com a velocidade do avanço tecnológico dos últimos trinta anos, é aparente que sinais de uma entropia social estejam mais visíveis.
Durante muitos anos, a cultura ocidentalista, que tem nos EUA seu principal propositor, tem direcionado uma boa parcela da civilização mundial, impondo e doutrinando os rumos econômicos, sociais, culturais e estéticos dos demais países do mundo (um adendo: apesar de estarmos no bloco, o Brasil não é considerado um país ocidental). Eu não quero aqui me deter nas mazelas e em toda problemática que esse combo produziu e produz há décadas, há muitos malefícios sim, porém há também alguns benefícios e minha ideia é refletir o quanto no decorrer dos anos, com a sociedade se tornando gradativamente mais plural e com a ascensão dos outros players na geopolítica, essa estética sociocultural tem entrado em franca decadência.
Por muito tempo nos foi imposta uma estética de sociedade, onde o padrão dominante consistia de indivíduos brancos, homens, mulheres e crianças que representavam o todo, de certa forma enviando a mensagem subliminar que estes representavam a sociedade que importa, ou o padrão estético social que deveria ser desejável alcançar. Isto se deu através de propagandas, revistas, novelas, todo negro e indígena sabe que sua vida seria muito mais fácil caso estes fossem brancos, e este pensamento foi sendo construído não somente por questões socioeconômicas, ele foi sendo impregnado repetidamente por instrumentos midiáticos. Em todo o espectro de visibilidade social esse era o imperativo, enquanto outros grupos étnicos eram retratados como exóticos, estranhos e vilanescos. Nos antigos desenhos animados de personagens da Disney, nos desenhos do Pica-Pau, Pernalonga, na dublagem da dona do Tom no desenho Tom&Jerry entre outros da décadas de 1940/50/60, foram estabelecidos estereótipos de mexicanos, chineses e africanos. Escritores renomados por suas criações literárias tratavam as culturas e religiosidades de nativos norte-americanos e africanos como paródias demoníacas, culturas exóticas e pagãs, e obtiveram grande sucesso com suas obras. Autores como H.P. Lovecraft (que criou o conceito fictício de Terror Espacial e o mito dos deuses antigos, como Cthulhu, Dagon, Hastur etc), Robert E, Howard (criador de Conan, Rei Kull, Sonja e Salomon Kane), Edgar Rice Burroughs (criador de John Carter, um herói veterano confederado da guerra-civil americana e Tarzan, um homem branco criado por macacos e que tornou-se o senhor das selvas, dos animais e dos povos que habitavam nelas, detalhe é que Burroughs nunca pisou em uma selva, então a ideia dele é que toda a África era uma grande selva). O cinema americano como item de exportação e grande propagador do American Dream, moldou a figura do herói desbravador e cheio de honra através de seus westerns com atores como John Ford, John Wayne e Ronald Reagan (declaradamente supremacistas brancos e racistas) que eliminavam nativos norte-americanos e mexicanos, e mais tarde criou a mística de personagens de ação que beiravam semi-deuses militares como John Rambo (Sylvester Stallone), James Braddock (Chuck Norris), John Matrix (Arnold Schwarzenegger) que antagonizavam com russos e árabes. Acredito que dentre muitos outros signos que foram constantemente introjetados na subjetividade de sociedades que consomem de forma massiva a cultura norte-americana, estes se destaquem na formação da ideia de superioridade e invencibilidade dos norte-americanos.
Porém o mundo se tornou menor nas últimas décadas. Em muito por conta do advento da internet, outros grupos, outras narrativas, outras formas de sociabilização ganharam visibilidade e voz. Se recortarmos os dez últimos grandes sucessos da gigante do streaming, Netflix, teremos ao menos três produções de fora dos Estados Unidos entre as cinco primeiras: Round 6 (Coreia do Sul), La Casa de Papel (Espanha), Lupin (França). Produções protagonizadas e com elenco majoritário de negros, o cinema indiano e os Doramas. O K-Pop que emula as boy-bands norte-americanas, o Afrobeat e até o funk brasileiro que atravessou fronteiras e tem ganhado países da América-Central, Europa, Ásia e África. Misses e modelos negras e negros em grande evidência, comunidades antes minoritárias e oprimidas, marginalizadas dentro de um contexto que só visibilizava o branco, agora entram em evidência, falam por si mesmas e impõem condições e postura de respeito onde antes a menção de suas categorias era sinônimo de escárnio, preconceito e piada.
A pluralidade e a diversidade trouxe consigo a exigência de um grande público em enxergar-se. Grandes produções americanas, os chamados blockbusters, passaram a reservar parte de seu protagonismo para personagens asiáticos visando a gigantesca bilheteria que o público chinês lhes dava, proporcionando a casa de bilhões em arrecadação. A retratação de negros e nativos americanos tem por norma agora distanciar-se do estereótipo de outrora, respeitando sua cultura, ritos e tradições quando tratados. Mulheres negras e de outras etnias que não brancas agora figuram em número adequado nos concursos de misses. A literatura negra, indígena e de outros pensadores _ sejam acadêmicos ou orgânicos _ de outros grupos étnicos e nações que não do eixo euro-estadunidense fazem parte do currículo universitário (mesmo que ainda muito poucos).
Citei alguns recortes que auxiliam em um melhor entendimento de um todo muito mais complexo que está em andamento e atinge áreas diversas, e todas essas mudanças sociais com a inserção de grupos que componham um cenário multiétnico e tragam outras experiências e visões a amplos cenários e campos de atuação da humanidade, readequaram o papel dos grupos que outrora monopolizavam essas estruturas. Essa ainda sendo uma realidade incipiente, já vem causando transtornos em uma camada da população que antes se via como hegemônica e essa nova realidade lhes trouxe o panorama do não lugar, de não possuírem mais a primazia das discussões ou de obterem uma leitura de mundo a partir de sua perspectiva sociocultural.
Uma forma muito interessante de “ler” o estado de uma população ou grupo é observar a sua produção cultural, a cultura reflete o sentimento geral e a indústria cultural dos Estados Unidos tem reproduzido em muito a sensação de mal-estar pela qual eles enquanto nação estão vivendo agora. Repare na quantidade de séries sobre distopias e produções que trazem como tema invasões alienígenas ou de fim do mundo. Percebesse nas entrelinhas dessas produções reflexões que remetem a incerteza com o futuro, outrofobia* ou fim das coisas como eram conhecidas.
Concomitantemente facilmente encontramos a continuação de produções que repetem a mesma fórmula de suas antecessoras de grande sucesso, ou histórias repaginadas de outras velhas conhecidas, remakes ou adaptações que apelam para a identificação do público, para a nostalgia de um tempo “mais simples”, que partia de uma visão quase única de mundo. The Boys e Deadpool e Wolverine são grandes comédias de bonequinho para adultos, e digo isso sendo eu um grande colecionador de quadrinhos tendo mais de mil títulos em meu acervo.
Não é estranho, que tais produções estejam em uma crescente ao mesmo tempo que vemos a ascensão da extrema direita mundial, com pautas extremamente conservadoras e sectárias. Um mundo plural não os atende, para eles é preciso um retorno a uma realidade pautada por um grupo hegemônico que se vê em uma escala de superioridade. E essa grita é o sinal de um sistema se fraturando, rachando, tentando segurar as rédeas, um estado que prenuncia um grande esforço de controle absoluto ou esfacelamento, e em ambos os casos, a entropia é um destino inevitável.
Outrofobia: Rejeição, medo ou aversão ao outro. Termo genérico para abarcar diversos tipos de preconceito ao outro, como machismo, racismo, homofobia, elitismo, transfobia, classismo, gordofobia, capacitismo, intolerância religiosa, etc.